top of page
Márcia Detoni

Chegou a vez de quem sabe usar a caneta

Programas escritos com a caneta são melhores que os escritos com o gravador. Era o que dizia pelos corredores da BBC o chefe do Departamento de Programas Especiais Laurence Gilliam lá nos anos 1950, quando os gravadores portáteis começavam a se popularizar e os repórteres saiam às ruas para captar as vozes comuns e os sons da realidade. As revolucionárias tecnologias analógicas da época mudavam a cena. A necessidade de informação rápida, nova, quente, levou ao crescimento do radiojornalismo e à redução dos espaços criativos. As histórias profundas ou impressionantes contadas por um narrador saíram do ar. Mas a roda gira. O fato é que hoje os podcast escritos com a caneta estão bem mais atraentes que as reportagens frias e objetivas do cotidiano, ou que o blábláblá repetitivo de um sem-fim de debates e entrevistas. Trazem um sabor de novidade com suas histórias humanas ou investigações bem detalhadas. Chegou a vez dos que sabem usar a caneta.


Um bom exemplo de quem fez carreira na escrita e está dando um show no áudio é Chico Felitti, jornalista e escritor com longa carreira que repercutiu nas redes sociais em 2017 com uma reportagem sobre Ricardo, o “Fofão da Augusta”. Como bom repórter, Felitti investiga, vai às ruas, entrevista, coleta sons e vozes, mas não cai no relato informativo. Em vez de informar, narra. O material gravado entra como comprovação, ilustração, tempero, respiros estéticos. Cumprem uma função narrativa e jornalística, mas coadjuvante. A voz do narrador se impõe soberana e envolvente, no melhor estilo National Public Radio americana. A gente gosta? Muito! Além do Meme, uma das várias produções em áudio de Felitti, está entre as mais ouvidas no Spotify. Foi lançada em outubro de 2020, mas continua atualíssima.


Não deixe de conferir o último episódio, “O Menino do Bar Mitzvá”. Quem não se divertiu de forma genuína ou zombeteira com o viral em 2012? É a história de um menino tímido de 13 anos que protagoniza um vídeo tosco para alegrar a comemoração de sua maturidade religiosa no judaísmo. Cai no olho do furacão das redes sociais. É assediado, sofre com a fama estranha, busca o esquecimento. História humana, final inesperado, reportagem feita com cuidado e ética. Além do Meme é uma produção de Um Milkshake Chamado Wanda com o Papel Pop.



Outro exemplo de sucesso no uso da caneta é o Prato Cheio, podcast do site O Joio e o Trigo, criado em 2017 com foco em jornalismo investigativo sobre alimentação, saúde e poder. O programa foi lançado no ano passado e já entregou quatro temporadas e vários extras. Investigações em profundidade, roteiro bem escrito, vale a pena conferir todos. Mas, como exemplo de soberania da palavra, indico o primeiro, “Parece Comida, mas não é”, sobre alimentos ultraprocessados. Funciona. A mente por trás do projeto é a do jornalista João Peres, e o roteiro é de Victor Matioli, ótimo também na locução. Apenas um reparo, pessoal do Prato Feito: mais cuidado no usa da música em BG (background). A música de fundo não está sendo aliada à função narrativa e acaba tirando a força da palavra. Nesse formato, menos BG é mais. Vale ressaltar que Prato Cheio recebe contribuições de ouvintes e apoios de institutos importantes, como a Fundação Heinrich Böll e o Serrapilheira.



0 comentário

Comments


bottom of page