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Márcia Detoni

Filhos da Ditadura

Quando jovem, meu pai era jornalista. Em 1º de abril de 1964 ele defendia a democracia nos microfones da Rádio Difusão, em Erechim (RS), quando os milicos chegaram para prendê-lo. Escapou pelo telhado e correu para casa. Com a ajuda de minha mãe, queimou no fogão a lenha dezenas de livros. Outros tantos, enterrou no quintal. Temia ser acusado de comunista. Não era. Era um intelectual, um homem de leitura, um curioso sobre o mundo e a vida. Retornou rapidamente à rádio e continuou noticiando a resistência até os milicos voltarem.

Eu tinha um ano e meio de idade. Desesperada, minha jovem mãe de 20 anos chega ao centro de detenção comigo nos braços. Insiste em ver o marido. Eu choro alto, secreção escorrendo pelo nariz. Sensibilizado, o guarda nos deixa passar. Waldemar não perdoou Marlene por permitir que eu o visse atrás das grades. Foi um constrangimento. Jamais falou sobre isso comigo, nem com ninguém. Minha mãe é a memória daqueles tempos. Conta que caminhões e mais caminhões chegavam ao grande centro de detenção militar carregados de presos: líderes políticos, professores, profissionais liberais, sindicalistas, estudantes... O Rio Grande do Sul daquela época era majoritariamente PTB: Getúlio, Brizola, Jango. Era um Rio Grande sensível, solidário, preocupado com o desenvolvimento de seu povo. Depois de cinco dias, por pressão da comunidade, meu pai, foi liberado. Continuou no jornalismo por algum tempo, mas a censura o calou. Formou-se, então, em Direito e fez oposição à ditadura até o fim. Em 1966, eu e minha geração ingressamos na escola reformulada pelos milicos para ensinar as crianças a respeitar a ordem vigente. Éramos os filhos da ditadura: cantávamos o hino nacional - e muitos outros - , hasteávamos a bandeira, marchávamos no sete de setembro, aprendíamos a fazer conta e a escrever. Pesquisavamos na Barsa; uma cópia dos verbetes. Todo o conteúdo crítico foi substituído por “Educação Moral e Cívica” e “Organização Social e Política Brasileira”. Não havia o conceito de cidadania. Foi proibido falar em Getúlio, Brizola, Jango. Roubaram-nos a história crítica, a geografia social, a sociologia, a filosofia. Tudo era perfeito no governo dos militares. Não havia pobreza, nem conflitos, nem racismo, nem censura, nem tortura no “país que vai para frente, ou, ou, ou, ou, ou!”. O resultado é que nos roubaram uma parte do cérebro e da alma. Contemporâneos – criados na ignorância e sob censura, com todos os privilégios de classe média - ainda referem-se aos anos de chumbo como tempos bons; tempos felizes da tenra idade, como nos versos de Casemiro de Abreu: “Oh, que saudades que tenho da aurora da minha vida, da minha infância querida que os anos não trazem mais...”. A infância, como sabemos, é saudosa em si. Brincávamos de esconde-esconde num país sombrio. A ditadura prendeu, matou, torturou, censurou e, muito além disso, castrou o potencial criativo de três gerações.


Sou professora universitária e vejo jovens completamente alienados chegando ao curso superior. São os netos da ditadura; pouco ou nada sabem sobre história, política, ou questões sociais e filosóficas. Uma sociedade que perde a capacidade crítica perde também a sua identidade, a sua essência espiritual e o seu próprio destino. A que ponto chegamos! Militares investidos anacronicamente de poder insisitindo na revisão da história! Não há o que comemorar neste 1º de abril. Ao contrário. Nunca foi tão importante relembrar.

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